terça-feira, 2 de agosto de 2011

Vale, a mineradora com as mãos sujas de sangue

Vale, a mineradora com as mãos sujas de sangue

Por trás da imagem verde e amarela que vende na televisão, a ex-estatal Companhia Vale do Rio Doce, hoje uma transnacional, coleciona denúncias de graves violações trabalhistas e ambientais por todo o planeta. Fotos Acervo Justiça nos Trilhos

Por Tatiana Merlino

Peru, 2006 No dia 22 de julho, o líder camponês José Lezma Sánchez é abordado por três homens numa feira do município de Eduardo Villanueva. De maneira violenta, é colocado em uma caminhonete e levado a sua casa, em Campo Alegre. Chegando lá, sua casa é vasculhada. Como não encontram nada, começam a agredi-lo fisicamente e o ameaçam de morte caso insista nas ações “antimineradoras”.

Sánchez era presidente da Frente de Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Rio Cajamarquino (Fredemac), que se opunha à instalação, na região de Cajamarca, da mineradora Miski Mayo, subsidiária da transnacional brasileira Vale SA (antiga Companhia Vale do Rio Doce).

Víctor Acosta, também integrante da Fredemac, conta que episódios semelhantes ocorreram com diversas lideranças camponesas que se opuseram à implantação da mineração na área. “Primeiro, tentavam comprar, chantagear. Como não deu certo, partiram para o uso de milícias armadas”, explica.

Acosta conta que os camponeses são contrários “à mineração porque defendem suas águas. Não existe atividade agrícola e pecuária sem água, por isso eles se opõem às atividades extrativas”.

A Miski Mayo instalou-se em Cajamarca em 2004. Três anos depois, a pedido da população local, a Comissão de Gestão Ambiental Sustentável do governo peruano realizou uma visita à região e relatou: “Nossa principal surpresa e indignação foi encontrar gente armada com escopetas e rostos cobertos que faziam a guarda na mina.
As conclusões foram: a empresa Miski Mayo recorreu a ‘quadros de defesa’, contratando, para isso, pessoas com antecedentes criminais. Algo mais preocupante ainda: o grupo de defesa foi provido com armas de fogo”.

Moçambique, 2007 Mil e trezentas pessoas começam a ser removidas da vila de Moatize, no estado do Tete, para a implantação de uma mina de exploração de carvão da Vale Moçambique, que ganhou, no ano anterior, a concessão de 35 mil hectares de terra na região. Segundo Thomas Selemane, da organização moçambicana Movimento dos Amigos da Floresta, as famílias estão sendo deslocadas para uma área de pior qualidade para a prática da agricultura, “e as casas que a Vale está construindo são de baixa qualidade”.

No local do empreendimento, há dois cemitérios, e a empresa já está dando procedimento à exumação dos corpos. “Para as famílias, isso é inconcebível, é uma violação das tradições”. Na fase inicial de implantação já ocorreram três greves “por conta da diferença de tratamento com trabalhadores moçambicanos e estrangeiros”, explica Selemane.

Há, ainda, denúncias de que a empresa oferece, aos trabalhadores, refeições que provocam alergias e dores. A empresa mantém, com muitos dos funcionários, vínculo contratual precário e de curta duração, deixando-os numa situação de constante insegurança.

O contrato de concessão firmado com a Vale em Moçambique é válido por 35 anos, a partir de 2007. Selemane pondera que, apesar de ser um grande projeto, ele é econômica e socialmente pouco rentável. “Gera pouco emprego, não tem projeto de transferência de conhecimento etc. O mais provável é que depois de 35 anos deixe dividendos para seus acionistas e deixe para o resto do povo danos ambientais e todos os buracos que vai fazer naquela área”.

Nova Caledônia, 2006 A Vale Inco empresa resultante da compra, pela Vale, da mineradora canadense Inco, decide construir, na colônia francesa situada no sudoeste do oceano Pacífico, um duto para resíduos da atividade de mineração dentro do mar. A barreira de corais da Nova Caledônia, que circunda o país, é a maior do mundo, formando, também, o maior sistema de lagoas do planeta.

Jacques Boengkih, da organização indígena Agencia Kanak de Desenvolvimento Nova Caledônia (Agence Kanak de Developpement Nouvelle-Caledonie), considera a Vale um novo poder colonial. “Já destruíram uma área grande de floresta tropical, onde há espécies raras. Temos árvores da era dos dinossauros. Não sabemos qual serão os impactos desses resíduos”.

Além dos impactos no meio ambiente, há os sociais, como o surgimento da prostituição, antes desconhecida pelo povo tradicional da Nova Caledônia. “Fora que o país não está ganhando nenhum dinheiro com isso. E não gostamos disso, queremos que eles paguem royalties. Não entendo como eles possam tirar o níquel, vender para a China, e nós não ganharmos nada. Essa é uma nova forma de colonialismo, e é muito estranho, porque o Brasil foi uma colônia”.

Transnacional brasileira
Os casos acima retratam, resumidamente, o modus operandi da transnacional brasileira Vale S.A. após sua privatização, realizada, por meio de um leilão, em abril de 1997. A verdadeira cara da empresa é bem diferente da que ela mesma vende em propagandas de televisão, que a atrela a imagens de famosos, como a atriz Fernanda Montenegro e o fotógrafo Sebastião Salgado.

Uma das maiores transnacionais brasileiras e a maior mineradora do mundo, o grupo empresarial da Vale é composto por, pelo menos, 27 empresas coligadas, controladas ou joint-ventures, distribuídas em mais de 30 países, como Brasil, Angola, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Indonésia, Moçambique, Nova Caledônia e Peru, onde desenvolve atividades de prospecção e pesquisa mineral, mineração, operações industriais e logística.

Sua forma de atuação não difere da das grandes corporações mundiais, que utilizam a superexploração do trabalho e destruição do meio ambiente para garantir alta lucratividade. “A Vale não é brasileira nem verde e amarela. Isso é propaganda. Ela é uma multinacional como outra qualquer”, diz Ana Garcia, da Fundação Rosa Luxemburgo.

Sandra Quintela, economista e integrante do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), explica que a Vale não é mais uma empresa nacional, “mas sim uma empresa controlada por seus acionistas. Grande parte deles são bancos e fundos de pensão, capital financeiro. Assim, objetiva capitalizar os seus acionistas e, para isso,
tem aplicado uma política duríssima: de um lado, tirando direitos dos trabalhadores, economizando as despesas de pessoal; de outro, com uma escalada ilimitada de exploração mineral”.

A Companhia Vale do Rio Doce foi fundada em 1942 como uma empresa estatal brasileira. Sua privatização é, até hoje, contestada na Justiça brasileira. Desde então, a empresa obteve lucro total de 49,2 bilhões de dólares, dos quais 13,4 bilhões foram distribuídos aos seus acionistas. Nos últimos dez anos, foi a quarta empresa mais rentável entre as grandes companhias (de acordo com o Boston Consulting Group).

Em janeiro de 2010, seu valor de mercado foi avaliado em 139,2 bilhões de dólares, rendendolhe a 24ª posição entre as maiores companhias do mundo, de acordo com o jornal inglês Financial Times. “Foram 49 bilhões de dólares de lucro para uma empresa que foi privatizada por 3 bilhões. É uma coisa absolutamente escandalosa, um saque ao patrimônio público”, critica Sandra.

Hoje, a Vale é controlada pela sociedade Valepar S.A., que detém 53,3% do capital votante (33,6% do capital total). Em seguida, aparece o governo brasileiro, com 6,8%, e vários investidores que não possuem mais de 5% das cotas.

A Valepar tem a seguinte constituição acionária: o fundo de pensão Previ, que por meio da sociedade Litel Participações S.A., possui 39% das cotas da sociedade; a Bradespar S.A. (sociedade de investidores ligada ao grupo Bradesco) com 21,21%; a empresa siderúrgica japonesa Mitsuib & Co. Ltda com 18.24%; os fundos de pensão brasileiros Petros, Funcef e Fundação Cesp, que, por meio da sociedade Litel Participações S.A., possuem 10% das cotas; e o governo federal, que possui 11.51%. O governo detém, ainda, ações especiais (golden share), que lhe dão poder de veto em determinadas decisões.

Violações às comunidades
Os impactos da expansão resultante da privatização da empresa foram discutidos durante o I Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale, ocorrido no Rio de Janeiro, sede nacional da Vale, entre 12 e 15 de abril. Estiveram presentes cerca de 160 pessoas de 80 organizações e movimentos de todas as regiões do Brasil e de países como Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Moçambique, Nova Caledônia e Peru.

Durante os quatro dias, os participantes apresentaram os casos de violações às comunidades tradicionais, aos trabalhadores e ao meio ambiente gerados pela mineração. Discutiram, também, estratégias comuns de enfrentamento e resistência à transnacional brasileira. A tônica do encontro foi de estudo e troca de experiências entre os moradores e comunidades afetadas pela mineração no mundo.

Uma preparação para o encontro foi realizada nos dias anteriores. Em 6 de abril, duas caravanas percorreram os estados de Minas Gerais, Pará Maranhão com o objetivo de permitir aos participantes entrar em contato com as realidades dos atingidos pela mineradora.

A primeira saiu de Itabira, cidade onde a empresa nasceu e que sofre com altos índices de poluição decorrentes de sua atuação. A segunda cruzou o Eixo Carajás, onde comunidades convivem com empreendimentos localizados em Barcarena,Marabá e Paraupebas, no Pará, e Açailândia e São Luís, no Maranhão.

No primeiro dia do encontro, os participantes seguiram à Baía de Sepetiba, no Rio, onde a Vale, em sociedade com a ThyssenKrupp, está montando a Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), acusada de causar danos ao meio ambiente e às comunidades
ribeirinhas. A TKCSA irá emitir 273,6 mil toneladas/ano de poluentes, sobretudo monóxido de carbono (229.758 toneladas) e dióxido de enxofre (21.540 toneladas). Há, também, denúncias de que, na região, a empresa esteja atuando com grupos de milícias (paramilitares) que ameaçam aqueles que se opõem ao empreendimento.

Entre os impactos ambientais provocados pela Vale, Guilherme Zagallo, advogado da Campanha Justiça nos Trilhos e vice-presidente da OAB do Maranhão, destacou que a transnacional emitiu, em 2008, 16,8 milhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, causando prejuízos à saúde da população. Ele também apontou que “em suas operações, a Vale consumiu 335 milhões de metros cúbicos de água em 2008, sendo responsável pelo derramamento, no ambiente, de 1.562 metros cúbicos de salmoura, álcool, hidrocarbonetos e outros poluentes”. Para se ter uma ideia,
em 2008, a Vale produziu 346 milhões de toneladas de minérios. E em 1997, tal produção foi de 113 milhões de toneladas.

Zagallo denuncia, ainda, a responsabilidade da mineradora em atropelamentos ferroviários. Em 2007, ocorreram 23 mortes; em 2008, houve nove mortes e 2.860 acidentes. “São mortes silenciosas. A única responsabilidade da empresa com isso é a compra de caixões. E, depois, falam que isso faz parte das dores do crescimento”, criticou.

O vice-presidente da OAB do Maranhão lembrou que, além das mortes, o impacto sobre as comunidades que vivem à beira do percurso das ferrovias inclui “atropelamento de animais, ruído, interrupção do tráfego de pessoas e veículos em cruzamentos sem passarelas ou passagens de nível”.

Cinco usinas siderúrgicas
Esse drama é vivido por Edevard Dantas Cardeal e pela comunidade onde vive. Ele é morador do povoado de Piquiá, município de Açailândia, no Maranhão, onde estão em operação, atualmente, cinco usinas siderúrgicas, que produzem, anualmente, 500 mil toneladas de ferro-gusa.

A estrada de ferro passa ao lado do povoado e a BR-222 atravessa a comunidade. Quase toda a produção é exportada para os Estados Unidos, Ásia e Europa. Apenas uma pequena parte é destinada ao distrito industrial do Piquiá. Essa cadeia siderúrgica é alimentada a partir de minérios da Vale, única fornecedora das cinco usinas em funcionamento na região.

Seu Edevard, nascido na Bahia e hoje com 66 anos, diz que vai lutar contra a Vale até quando aguentar. “Pode escrever tudo que eu estou falando, que eu assino embaixo. Sou um grande prejudicado dos empreendimentos”.

O senhor simpático de óculos e barba por fazer conta que vive na região desde 1969. “Tinha um rio, o Piquiá, que a gente usava para lavar roupa e até beber. Depois, a Vale chegou com essas empresas siderúrgicas e poluiu tudo. Tem ainda a estrada de ferro, que passa rente ao nosso povoado”.

Seu Edevard lembra que, antes da chegada da mineração, a comunidade sobrevivia da roça. Agora, não há mais onde plantar. “Tem que andar de 150 a 200 quilômetros para fazer roça. Hoje, a gente vive de respirar pó de ferro de minério e outros resíduos que caem dentro da cidade”. O agricultor conta que possuía uma grande área de terra: “eu tinha ideia de sobreviver ali plantando minhas coisas, mas, com a poluição que veio, perdeu valor e não tem como sair para outro lugar”.

De acordo com o Dossiê dos Impactos e Violações da Vale no Mundo, apresentado no final do encontro no Rio de Janeiro, a extração de madeira nativa para a produção de carvão vegetal a ser utilizada nas siderúrgicas é altamente predatória naquela região e gera muitos agentes poluentes, principalmente monóxido de carbono, com grandes
efeitos sobre a saúde, como doenças respiratórias. “Os problemas relacionados às atividades das guseiras e os conflitos socioambientais na região aumentaram com a exploração da Vale”, aponta o documento.

Segundo seu Edevard, houve um aumento do número de problemas de saúde, como coceira, dores de garganta e alergia na pele das pessoas. Ele relata, também, que a poluição emitida pelas chaminés da siderúrgica, por onde sai pó de minério, pó de carvão vegetal e outros resíduos, “caem dentro do rio e no quintal da gente, em cima das casas, em cima de tudo”. Nas fábricas, não existem filtros antipartículas. Assim, quando os alto-fornos são abastecidos com minério e carvão vegetal triturado e homogeneizado, a fuligem emitida contém resíduos provenientes do aquecimento do minério. Fuligem que cobre os móveis, camas e utensílios de cozinha das casas do povoado, causando doenças respiratórias graves.

Quando a caravana norte passou pela comunidade, Seu Edevard juntou parte do pó que cai no telhado de sua casa. Num gesto simbólico, os participantes colocaram as mãos no pó, e, em seguida “carimbaram” o peito, para mostrar os danos respiratórios causados pela siderurgia. “Sabe como é chiqueiro de porco, cercado por quatro lados? Não é lugar de viver, mas estamos vivendo assim. Por isso a comunidade quer ser indenizada, já entramos com um processo. Chega de tanto sofrer”.

Tatiana Merlino é jornalista.
tatianamerlino@carosamigos.com.br

Revista Caros Amigos - maio/2011
http://carosamigos.terra.com.br/

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