segunda-feira, 23 de maio de 2011

Caraça, Gandarela e a necessidade de preservação

Entre o céu e o inferno

Sítio histórico de Minas Gerais corre risco de ser ilhado por mineradoras

Cristina Romanelli
1/5/2011

Não é de hoje que a Serra do Caraça, em Minas Gerais, tem uma ligação com os céus. Ela já abrigou uma irmandade, uma escola apostólica e um colégio preparatório dirigido por padres. Talvez tenha chegado a hora de aproveitar essa conexão especial e apelar para a ajuda divina. Mesmo inserida em várias áreas de proteção ambiental, a serra está sendo cercada por mineradoras e corre o risco de ficar ilhada. Denúncias de esquemas para burlar a já falha legislação ambiental se espalham até a vizinha Serra do Gandarela, apesar de estar em andamento a criação de um parque nacional no local.
“No século XVIII, o irmão Lourenço criou na Serra do Caraça uma hospedagem e a irmandade Nossa Senhora Mãe dos Homens. Depois, em 1820, dois padres da Congregação da Missão fundaram ali um colégio preparatório, que chegou a ter cinco vezes mais estudantes que os outros colégios”, conta Mariza Guerra de Andrade, autora de A educação exilada – Colégio do Caraça (Autêntica, 2000). Todos os alunos que passaram por ali eram membros da elite, como os futuros presidentes Afonso Pena e Artur Bernardes [ver “À porta do céu”, RHBN nº 14].
Desde os anos 1970, o local, tombado pelo Iphan, funciona como pousada. É possível ver partes das alas construídas pelo irmão Lourenço, os prédios e a igreja do século XIX. “Há uma biblioteca, com obras principalmente literárias e religiosas, e um pequeno museu com peças antigas”, diz Mariza. As outras atrações são as mesmas que já encantavam viajantes como o botânico Carl Friedrich Philipp von Martius nos séculos anteriores: um vale com cachoeiras, piscinas naturais, grutas e grande variedade de animais e plantas. Com tanta oferta, a área virou Reserva Particular de Patrimônio Ambiental (RPPN) e foi decretada Parque Natural pelo Ibama em 1994. Hoje a serra está inserida em outras três áreas de proteção maiores. No entanto, nada disso a protege das atividades mineradoras ao redor. “Se o Caraça virar uma ilha, sem proteção em volta, a fauna vai ter dificuldade para sair, o que impossibilitará a troca genética e a polinização de outras áreas. Precisamos de um corredor ecológico que ligue a serra a outra área de preservação”, explica Aline de Abreu, coordenadora ambiental da RPPN Santuário do Caraça. Segundo ela, os lobos-guará, que atraem grande parte dos turistas, também seriam prejudicados. “Quando os filhotes crescem, lutam com os pais para decidir quem fica com o território, e os perdedores têm que ir para outro lugar. Não sei como fariam”, diz Aline.Na busca pela preservação, os ambientalistas descobriram que, embora a serra seja considerada Monumento Natural desde 1989, nunca teve sua área delimitada, o que gera insegurança jurídica. “O Monumento Natural não permite a extração de recursos naturais, como a mineração. Se a delimitação não ocorrer em breve, o Ministério Público acionará o Poder Judiciário”, afirma Marcos Paulo de Souza Miranda, promotor do Ministério Público de Minas Gerais.
De acordo com o Instituto Estadual de Florestas, a meta é que o processo de criação do Monumento Natural seja finalizado este ano. Enquanto isso, por estar em pleno quadrilátero ferrífero, a serra vai sendo cercada por mineradoras. “Mesmo dentro da RPPN do Caraça havia títulos para exploração de ouro. Uma de nossas primeiras vitórias aconteceu no fim de março, quando uma recomendação para cancelamento foi aprovada”, conta o promotor. Segundo ele, há uma série de investigações e ações civis públicas em andamento. “Há indícios de irregularidades e simulações, mas não podemos citar nomes por enquanto”, explica.Já na Serra do Gandarela, que fica logo ao lado, as investigações parecem estar mais avançadas, tanto quanto a ação das mineradoras. Segundo documento expedido pela Procuradoria da República em Minas Gerais em maio de 2009, a concessão de Autorizações Ambientais de Funcionamento às empresas Vale, Mineração Serras do Oeste e Mineração Apolo “sugere a ocorrência de fragmentação de empreendimento minerário como forma de burlar a exigência de licenciamento ambiental”. Ou seja, as empresas teriam apresentado suas atividades na região separadamente, com o objetivo de não chamar atenção para a real dimensão dos empreendimentos. Alguns ambientalistas vão mais longe nas acusações. Afirmam que a Vale teria contratado empresas menores como “testas de ferro” para atuar em áreas que pertencem ao Projeto Mina Apolo, o maior empreendimento na região. “Nós às vezes arrendamos terras para empresas pequenas, mas tudo é avisado aos órgãos de defesa ambiental”, defende Julio Nery, gerente-geral de Licenciamento Ambiental da Vale. A preservação da Serra do Gandarela é a peça-chave para resolver o problema da região do Caraça. Por serem muito próximas, as duas serras, se preservadas, manteriam um corredor ecológico e não ficariam isoladas. “Em 2009, fizemos o pedido de criação de um parque nacional na Serra do Gandarela. A proposta foi aceita pelo Instituto Chico Mendes e deve ir em breve às consultas públicas. O problema é que será preciso negociar com as mineradoras”, explica a ambientalista Maria Teresa Corujo. Segundo João Augusto Madeira, analista ambiental do Instituto Chico Mendes, se o projeto Mina Apolo não sofrer alterações, inviabilizará a criação do parque. “As outras propostas de preservação da área, para ‘compensar’ a implantação do projeto, são incompletas. Não garantem a sobrevivência dos diversos ecossistemas da região e não evitam que o complexo hidrológico seja prejudicado”, diz ele. Enquanto a situação não se resolve, grupos ambientalistas estão fazendo um abaixo-assinado e aumentando o número de adeptos da causa. Por enquanto, são mais de 15 mil assinaturas. Diante de interesses tão discordantes, toda ajuda é pouca.

Publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/entre-o-ceu-e-o-inferno

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